quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Jeremias – Pele (Graphic MSP)


Jeremias – Pele (Graphic MSP)

A história conta do dia-a-dia do personagem, todos seus desejos, ambições e fantasias de uma criança comum. Por ser uma criança negra, infelizmente ele tem que lidar com o racismo em sua escola. O quadrinho mostra como é esse primeiro contato de uma criança com o racismo e como isso afeta sua vida e de seus familiares. Essa é a sinopse básica da história e ela não foge muito disso, Rafael Calça apostou em um roteiro simples, mas o diferencial é o quão humano e chocante essa história pode ser. Nas primeiras páginas você tem um ar mais otimista em um ambiente confortável e ideal para o personagem. A família é uma parte muito importante dentro da história, eles já passaram pelas mesmas situações e tem o dever de explicar isso para o filho, por mais frustante que seja eles seguem lutando todos os dias. Se você reparar bem, ambos mostram que aceitaram suas origens e não tentam esconder isso. A mãe tem o cabelo armado e lindo, antes ela tentava esconder alisando o cabelo. O pai tem seu cabelo grande e crespo e ele não precisa raspar o cabelo como a maioria faz. Eles transmitem um ar emponderado que passa para o leitor e consequentemente para o filho. Aos poucos o roteiro vai criando situações para quebrar esse clima mais otimista e mostrar como o mundo é escroto fora de sua casa.



O roteiro apesar de simples dá margem para camadas de entendimento, lembrando muito os roteiros do Carl Barks. Ele dialoga muito bem com crianças porém dialoga com os pais da mesma maneira. O cenário e as ações que estão acontecendo em segundo plano contam uma história a parte, assim como acontece frequentemente na Saga do Tio Patinhas de Don Rosa. Coisas sutis como o herói preferido do personagem ser branco por falta de representatividade negra nos quadrinhos ou coisas mais literais como a estátua de Zumbi dos Palmares para representar um dos melhores diálogos dentro da história.


Dentro desta lógica de contar uma história no plano de fundo, temos na própria escola um número reduzido de alunos negros em comparação aos alunos brancos. Isso é reflexo da realidade do nosso país onde o acesso à educação pela população negra é bem pequena e representa apenas 2% das universidades brasileiras — públicas ou privadas. Algumas revistas do selo conversam entre si e aqui não foi diferente, temos a aparição da Turma da Mônica que é bem interessante e a aparição do astronauta que é essencial para o desenrolar da trama. Esse foi de longe o melhor uso das referências em todas Graphic MSP.



O traço do Jefferson Costa é lindo e não tem como discordar. Mas o que se destaca aqui é a sua narrativa, ela está excelente e entrega algo que é extremamente bem conduzido que se assemelha a um filme dirigido por algum diretor muito competente. Todo ritmo do quadrinho flui de uma maneira orgânica que facilita a compreensão das pessoas que não estão habituadas a ler quadrinhos. Isso é muito importante devido ao alcance que a Mauricio de Sousa Produções tem no mercado e adicionado a isso temos um tema que precisa ser acessível para todo tipo de leitor. Tem algumas passagens que a diagramação é excelente e bem imaginativa, mas o enquadramento predominante brinca bastante com a ideia de repetição de quadros para dar um movimento e uma importância maior para o acontecimento no último quadro da página. Outro recurso gráfico interessante é o uso da proporção que está diretamente ligado ao sentimento do personagem na página, não vou contar em qual momento isso acontece para não estragar a surpresa, mas quando acontece é algo visualmente impressionante e tocante.


 Jeremias – Pele é um acontecimento para os quadrinhos nacionais e se tirasse qualquer um dos fatores dessa equação, nada disso seria possível. É complicado eu falar que essa é uma história otimista e feliz, tratar desse assunto é muito complicado e nunca terá algo bom, somente quando houver alguma mudança. Afirmo que esse quadrinho vai ser o pontapé inicial para uma porção de mudanças no cenário nacional de quadrinhos e na sociedade em geral. Essa história precisava ser contada e foi da melhor maneira possível, infelizmente ela é um retrato histórico da nossa atualidade e é impossível não chorar no decorrer da história. Parabéns à todos os evolvidos e saibam que vocês fizeram parte de um marco e é isso que o quadrinho representa. Eu não tenho como terminar o texto sem falar sobre o excelente texto de quarta capa escrito pelo Emicida,



Vou deixar aqui embaixo e faço das palavras dele as minhas, Sem mais atrasos.

“A grande atriz Elisa Lucinda um dia me disse: “Nós precisamos parar de chegar atrasados na vida das pessoas”. Achei estranho em um primeiro momento. Afinal, cheguei quando consegui chegar. Mas o que ela queria dizer era que precisávamos ser escudos e não bandeides.

É no atraso e na ausência de nossa voz que os piores pesadelos se solidificam. Um monstro que se alimenta de ignorância pode ficar gigante. Entre esse monstro e quem amamos, é o importante lugar de nossas boas palavras e atitudes.

Há alguns anos, fui comprar caixas organizadoras com minha filha, para guardar os brinquedos dela. Havia uma infinidade de opções de cores, princesas loiras e uma única, quase escondida, com uma princesa escura como nós. Escolhi aquela e levei até a pequena, pois havíamos combinado de ser uma caixa com um princesa.

Ela pediu para ser outra. Argumentei que aquela princesa era linda, ela insistiu e eu insisti novamente na princesa negra. Ela chorou dizendo que queria uma caixa de princesa e não “aquela”.

Eu havia chegado atrasado.

A ausência de referências positivas nos rouba o direito de imaginar, estabelece um teto para nossos sonhos. Minhas lágrimas correram pelo rosto ao ler Jeremias – Pele.

Eu a vivi inteira tantas vezes…

A palavra que tenho para todos os envolvidos é obrigado.

Obrigado a um dos meus grandes ídolos, Mauricio de Sousa, por possibilitar a reinvenção de seus personagens por Rafael Calça e Jefferson Costa, trilhando um caminho tão sensível e crucial para devolver a nossos sonhos o direito de serem livres.

Com muita felicidade, Jeremias está chegando na hora certa.

Sem mais atrasos.”

Emicida













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